1956
Brasil, Distrito Federal
Fato RelevanteIdiomas disponíveis
Português
Colaborador
Karine Souza
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Os lotes eram cedidos em regime de comodato por quatro anos, e os comércios não pagavam impostos. Assim, a Cidade Livre tornou-se referência para o comércio de Brasília.
O crescimento rápido fez com que em pouco tempo surgissem hotéis, agências bancárias e companhias de aviação onde foi destinado para ser a cidade-dormitório dos candangos.
Esta incluída na Região Metropolitana de Brasília por força da Lei 4.545, de 10 de dezembro de 1964, e Decreto n.° 488, de 08 de fevereiro de 1966, que Ihe fixou os limites.
Em seguida, passou a ser chamado Núcleo Bandeirante - o primeiro nome escolhido para a cidade.
Milton Santos, 1965:
"[...] Daí, ao lado das imponentes edificações do Plano Piloto, os casebres típicos de "bidonville" de aglomerações como o Núcleo Bandeirante, também chamado "Cidade Livre". Esta resultou da necessidade de alojar os construtores da Capital e os que, tendo ou não ocupação fixa, se sentiram atraídos pelos trabalhos da construção. Chamou-se "Cidade Livre" para evidenciar a oposição relativamente à outra, construída segundo normas rígidas.
Pensaram os construtores de Brasília que poderiam suprimir essa Cidade Livre, logo terminada a construção da Capital, ou que estaria em suas forças substituí-la, atribuindo residências corretas aos seus ocupantes. Isso, porém, não foi obtido até então, e o que resta é um vivo contraste. Esse contraste começa pela repartição profissional dos moradores, o que acarreta uma enorme série de outros caracteres diferenciais, tanto do ângulo econômico, como do social."
David Crease, 1982
[...] A maior dentre as ocupações irregulares, a chamada Cidade Livre, já se tornou definitiva. Ela surgiu como expediente temporário, para atender às necessidades básicas dos pioneiros numa época em que a própria Brasília não passava de um canteiro de obras repleto de escavadeiras e bate-estacas. Foi na Cidade Livre que a ideia de Brasília floresceu e se exprimiu na evolução de um foco de vida urbana e de orgulho local. O espírito vigoroso de Velho Oeste permeia as suas ruas, em uma mescla de idealismo e comercialismo desenfreado. Apesar das tentativas de desalojar os moradores ao término de suas licenças provisórias, nada resultou disso; a comunidade já arraigada mostrou-se refratária a qualquer mudança. A decisão de reconhecer o inevitável e reurbanizar a Cidade Livre de acordo com padrões decentes é bem-vinda. A área tem uma localização conveniente, a cerca de treze quilômetros do centro de Brasília, e não parece haver para ela destino melhor o que se tornar um satélite. A vida urbana que ali brotou espontâneamente é preciosa demais para ser destruída; na verdade, não se consegue entender como foi possível construir Brasília sem levar em conta o papel desempenhado pela Cidade Livre; uma é parte da história da outra. A sua atmosfera descontraída e buliçosa faz um belo contraste com a elegância e formalidade de sua augusta vizinha. [...]
Progresso em Brasília. Tradução Claudio Alves Marcondes. The Architectural Review, n.782, Londres, Abr. 1962, p.256-62.
XAVIER, Alberto; KATINSKY, Julio Roberto (Orgs.). Brasília: Antologia Crítica. Face Norte, volume 14. São Paulo: Cosac Naify, 2012
James Holston, 1989:
"[...]Em contraste com essa zona de construção de atividades reconhecidamente públicas, a zona comercial era uma área temporariamente reservada para a iniciativa privada daqueles que, por própria conta e risco, quisessem encarregar-se de suprir o pessoal dos acampamentos de construção com bens e serviços. Essa zona tornou-se conhecida como Cidade Livre, embora fosse oficialmente chamada de Núcleo Provisório dos Bandeirantes ou Núcleo Bandeirante.
[...]
"Enquanto esta zona (de construção) era dirigida como um campo de treinamento militar, a Cidade Livre desenvolveu-se como seu oposto, sob uma política de laissez-faire. O plano do governo era encorajar empresários a fornecer suprimentos ao esforço de construção por sua própria conta, assumindo os próprios riscos (e, é claro, auferindo seus próprios lucros); depois da inauguração, a cidade já contaria, ademais, com um pessoal dedicado ao comércio e aos serviços. Para isto, o governo reservou um pequeno espaço no cruzamento das duas principais rodovias do Distrito Federal para a "iniciativa privada". Oferecia dois incentivos aos empresários: terreno grátis e isenção total de impostos. Em dezembro de 1956, a Novacap organizou a concessão de lotes, para um período de quatro anos, aos interessados no negócio. Os lotes foram postos à disposição em regime de comodato, que garante a livre concessão de algo não fungível por um período estipulado de tempo. O contrato dava ao empresário o direito de construir seu estabelecimento comercial na parte da frente do lote (neste caso definido como o lado dando para a rua) e sua própria casa nos fundos. Especificava que, como todas as construções eram temporárias, teriam de ser de madeira. A combinação entre um governo laissez-faire e edificações temporárias fez da Cidade Livre algo como uma vila de faroeste americano, com a qual foi frequentemente comparada: exibia casas com fachada falsa ao longo do passeio da rua principal, ora poeirenta, ora enlameada, que era em si mesma o palco de uma cultura esmagadoramente masculina de dinheiro vivo em quantidade, de ambição e sexualidade reprimida.
Entretanto, os contratos comerciais da Novacap estipulavam que, no fim do período de quatro anos, suas equipes de demolição teriam o direito de arrasar a cidade inteira. Com uma frase até hoje famosa na Cidade Livre, o presidente da Novacap declarou: "Em abril de 1960, mando os tratores para esmagar tudo". Antes desse dia apocalíptico, os empresários tinham o direito, pelo contrato, e eram estimulados, conforme a política de ocupação da Novacap, a transferir seus negócios para os terrenos comerciais no Plano Piloto. Dentre todos os pioneiros, apenas esses empresários e seus empregados tinham um direito preestabelecido, e, portanto garantido, de estar presentes na cidade inaugurada. Esse direito qualificava o empresário a adquirir os direitos de edificação em um terreno comercial no Plano Piloto (o qual continuaria a ser de propriedade do Estado, já que a terra propriamente dita era inalienável), sobre o qual erigiria um edifício a suas próprias custas, dentro das regras uniformes do planejamento urbano. Quero enfatizar que este não era um direito de morar em nenhuma das residências oficiais, pois o contrato não especificava nada quanto à residência do empresário nas superquadras do Plano Piloto.
[...] Era chamada de "Cidade Livre" precisamente porque cresceu em uma área livre dos regulamentos aplicados nos outros lugares. Suas liberdades baseavam-se no fato de que seus moradores importantes, os empresários, desfrutavam de concessão gratuita de terra e não pagavam impostos. Para as massas trabalhadoras que procuravam entrar no Eldorado de fronteira que era Brasília, contudo, a Cidade Livre era "livre" em outro sentido. Era uma cidade aberta. Em contraste com a zona de construção, era imediatamente acessível a todos: a quem acabava de sair do ônibus, a quem estava esperando a documentação para trabalhar na obra, a quem sonhava enriquecer da noite pro dia, a quem preferia as rotinas de um emprego no setor de serviços aos rigores da construção civil, a quem tinha a mais velha das profissões, a quem tinha o marido ou o pai trabalhando nos acampamentos. Qualquer migrante podia entrar livremente na Cidade Livre, achar livremente um lugar para morar, encontrar trabalho livremente - "livremente" significando, claro, de acordo com seus meios individuais.
Assim, a Cidade Livre era uma cidade capitalista à margem de uma economia planejada, onde as diferenças de privilégio estavam baseadas em diferenças individuais de renda que não eram apenas permitidas, mas incentivadas a encontrar formas desiguais de expressão. Essa cidade aberta da diferença, do individualismo, da ética empresarial contrastava nitidamente com os controles da zona de construção (assim como, em seguida, com a capital que se erigiu) onde diferenças de renda encontravam poucas oportunidades de se exprimirem no estilo de vida, e onde diferenças de status social - embora na verdade relacionados a importantes diferenças nos privilégios do acampamento - tendiam a ser negadas ideologicamente na fraternidade do trabalho duro.
[...] Enquanto a moradia nos acampamentos era distribuída com base no status, toda a moradia na Cidade Livre baseava-se em alugueis definidos pelo mercado. Os que pudessem pagá-los tinham o correspondente a seus meios individuais. A demanda por moradia sempre foi grande. No plano original da Novacap, a Cidade Livre era o único povoamento temporário autorizado a oferecer residências para quem não estivesse alojado nos acampamento de obra. Assim, os empresários desfrutavam de uma espécie de mercado cativo para seus hotéis, pensões e quartos de aluguel nos fundos. Uma vez que não existiam restrições de status sobre estas acomodações, os migrantes masculinos podiam tanto residir nelas com suas famílias, quanto alojá-las ali, se tivessem de ir trabalhar nos acampamentos. Essa possibilidade impôs um valor adicional nas moradias da Cidade Livre. Com efeito, apesar de seu ar de faroeste, mais de 89% de sua população morava em casas de família, definidas pela coabitação de pessoas relacionadas seja por laços de sangue, seja por laços jurídicos (IBGE 1959:103). Para responder a essa demanda crescente, os empresários construíram mais imóveis autorizados de aluguel. Além disso, como estava precisando muito de trabalhadores durante o primeiro ano da construção, a Novacap aparentemente ignorou o surgimento de barracos que os migrantes construíram sem autorização dentro dos limites da cidade para evitar o pagamento de alugueis cada vez mais altos. Contudo o frágil equilíbrio entre oferta e demanda de moradias foi irreparavelmente rompido ao longo de 1958, quando a limitada oferta de acomodações na cidade submergiu na maciça imigração das vítimas da seca no Nordeste. Os alugueis explodiram; seguiram-se sérios problemas de superpopulação. Tanto migrantes quanto especuladores reagiram a isto erguendo, sem autorização, uma enorme quantidade de barracos. Mais do que sancionar esse crescimento descontrolado, a Novacap retrucou proibindo qualquer expansão adicional da Cidade Livre depois de 31 de dezembro daquele ano. Tentou até mesmo diminuir o ritmo da imigração organizando, sem sucesso, um cordão de isolamento policial em torno da Cidade Livre.
[...]
A maior parte das favelas agrupava-se em volta da Cidade Livre, de modo a ter acesso a seus bens e serviços, numa simbiose que os empresários consideraram inteiramente de seu agrado. Pois, nas favelas, os empresários tinham uma quantidade de clientes constituindo um mercado lucrativo e em expansão; encorajaram seu desenvolvimento oferecendo crédito e serviços como eletricidade. De seu ponto de vista, essas ocupações constituíam um aspecto vital do mercado aberto do Distrito Federal, cuja existência sua Associação Comercial já tinha começado a defender, contra o plano da Novacap de demolir a Cidade Livre e realocar seus comércios nas áreas comerciais isoladas do Plano Piloto. De seu lado, os favelados encararam os empresários como fonte de bens, serviços, empregos e, não menos importante, como proteção contra expulsões. Assim, favelados e comerciantes tornaram-se aliados numa coalizão de interesses mútuos, para evitar que o Estado erradicasse não apenas as favelas mas, em última análise, a própria Cidade Livre. (p.245-27).
João Almino, 2010:
"A Cidade Livre atraía também gente de todo o Brasil, com um predomínio de mineiros e nordestinos. Quando os novos candangos não podiam morar com suas famílias nos acampamentos das obras, vinham para as áreas comerciais, dominadas por árabes e nordestinos, ou para as invasões que foram surgindo, Morros do Urubu e do Querosene, Vila Esperança, Vila Tenório, IAPI, Divinéia, Vicentina e Sarah Kubitschek. (...) os lotes eram distribuídos em regime de comodato e, como a escritura não era definitiva, deveriam ser devolvidas à Novacap no final de 1959; que não se davam alvarás para residências, que deveriam ser destruídas quando Brasília fosse inaugurada - primeira cidade destacável, a Cidade Livre era construída para ser destruída." (ALMINO in SILVA: 2011, p.43)
SILVA, Hélio Mendes da. De "espaço provisório" a um lugar de experiência identitária: paisagem cotidiana, práticas e representações do Núcleo Bandeirante/Cidade Livre. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de Brasília, 2011.
Elizabeth Bishop, Prosa
"Em quase todos os caules finos das árvores, mais ou menos na metade da altura, há um ninho de formiga-branca, ou cupim, horrendo, quase do tamnho de uma cabeça humana. Perguntei a meu motorista, um rapaz melancólico, coberto de poeira, a respeito desses ninhos, e ele respondeu secamente que os cupins constroem no meio do tronco das árvores para ficar mais perto das frutas. Separados por quilômetros de vazio, uns poucos aglomerados de telhados podem ser vistos, colônias de empregados da construção e outros novos habitantes. O maior deles, de longe, é o chamado Núcleo Bandeirante, um nome romântico, comumente conhecido como Cidade Livre. Foi inaugurado oficialmente em fevereiro de 1957, com quatrocentos habitantes, e agora tem - um fato incrível e animador - 45 mil. "Tudo de madeira", disse o motorista, uma afirmação que ouvimos muitas vezes, porque num país latino feiro de pedra, mármore, azulejos e gesso, uma cidade inteira construída deliberaddamente de madeira é uma curiosidade. "E livre ela é, mesmo", acrescentou ele; foi seu último comentário até chegarmos ao hotel."