1969
Brasil, Rio de Janeiro
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Português
Colaborador
Thiago Silva/Janaína Lisiak
Citado por: 1
A urbanização da favela Brás de Pina, no Rio de Janeiro, 1969, realizada pelo grupo QUADRA, integrado pelos arquitetos Carlos Nelson Ferreira dos Santos, Silvia Wanderley e Rogério Aroeira, em parceria com a Companhia de Desenvolvimento de Comunidade (CODESCO), surge como ponto de inflexão enquanto episódio paradigmático do processo de urbanização participativo em espaços informais (neste caso, favela) num contexto de política habitacional marcado por remoções no Brasil. Paradigmático por sua conjuntura específica - foi um dos primeiros projetos participativos a ser de fato executado, iniciado por uma mobilização popular dentro do contexto da Ditadura Militar (1964-1985) e executado por gestores estatais. Não é somente um ponto de inflexão dentro da história do urbanismo, mas também dentro do próprio grupo de pesquisa - é uma resposta à questão habitacional através de um projeto de urbanização participativo, não com a construção de um conjunto habitacional.
Em 1965, os moradores da favela Brás de Pina, após o anúncio de despejo por conta do Estado, se organizaram em torno da associação de moradores para desenvolver um plano de urbanização, financiado pelos próprios habitantes. A contratação dos arquitetos (que, neste dado momento, ainda eram estudantes) ocorreu por meio do contato com a Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG). Por conta de diversas questões (que o Carlos Nelson Ferreira dos Santos elucida detalhadamente no livro Momentos urbanos do Rio de Janeiro), o projeto foi sendo descontinuado aos poucos.
O governo de Negrão Lima (1965-1970), último governador eleito durante a Ditadura Militar no Rio de Janeiro, trouxe propostas populares, em oposição às ações de Carlos Lacerda (Governador antecessor cuja gestão foi atravessada por ações higienistas, como erradicação de algumas favelas cariocas). É criada nesta gestão a Companhia de Desenvolvimento de Comunidades (CODESCO), que desenvolve um Grupo de Trabalho em conjunto com a QUADRA (neste momento, os arquitetos remanescentes da equipe inicial -Carlos Nelson Ferreira dos Santos, Sylvia Wanderley e Sueli de Azevedo- haviam se associado em torno de um escritório). Tal associação ocorre pois a CODESCO fica ciente do trabalho que o escritório de Carlos Nelson Ferreira dos Santos havia iniciado com a comunidade de moradores da favela do Brás de Pina. Assim, a urbanização da favela passa a ser financiada e sistematizada pelo Estado. A realização do plano de urbanização ocorre através de uma aproximação com os moradores, considerando os saberes e vontades da população, assim como os conflitos entre os agentes envolvidos (como as ações especulativas que começam a surgir por parte dos moradores, duramente criticada pelos funcionários da CODESCO).
Magali Marquez Pulhez, 2008:
"[...] durante os anos que antecederam o golpe militar, configurações eivadas de ambivalência, entre o interesse (muitas vezes de cunho assistencialista) e a condenação, haveriam de embeber o que diz respeito às formas populares de inserção urbana. Em relação às favelas, mais especificamente, ainda que seu aumento acelerado não permitisse mais que fossem de todo ignoradas, sua presença causava incômodo e desconforto para poderes públicos e profissionais da cidade e da habitação: junto aos discursos e práticas candentes de assistência social, ecoavam, de forma análoga, os mesmos brados pelo progresso (e contra o atraso, a desmoralização e a criminalidade gerados pela pobreza urbana) dos anos de 1930, legitimando muitas das ações truculentas de remoção integral de favelas ainda postas em curso durante os anos de 1950 e 1960.
Nestas circunstâncias, as poucas experiências de envolvimento de determinados arquitetos com o universo das favelas seguiam, também elas, de forma ambivalente: em sua maioria, encontravam-se ainda restritas à esteira caritativa do voluntarismo católico. Por outro lado, no entanto, construíam-se caminhos possíveis de reconhecimento da favela como um espaço legítimo de moradia e se estabeleciam vínculos estreitos de natureza política e cultural dos profissionais com as periferias, suas vizinhanças e organizações comunitárias, numa composição de forças que se faria notar nos movimentos de resistência ao autoritarismo que se seguiria.
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Ainda hoje emblemática, a experiência de urbanização da favela Brás de Pina, no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro, acontece justamente neste contexto histórico-político, em que as prefigurações do ofício se ampliam, num redesenho de seus próprios limites: a história de Brás de Pina e dos arquitetos que ali atuaram confunde-se com a própria história da redefinição da ação profissional naquele momento, na medida em que se permitiu questionar - e, em certa medida, também redimensionar - os territórios tradicionais em que os saberes e as práticas da arquitetura e do urbanismo até então eram erigidos.
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Foi buscando "explicações" ou "respostas" - sabidamente inalcançáveis - para o aumento das manifestações espaciais da pobreza urbana no Brasil que o pesquisador partiu de uma relação de reconhecimento do indivíduo dentro da favela, com seus códigos e padrões singulares, para um cenário mais amplo, de entendimento do indivíduo e da favela dentro das áreas metropolitanas, atentando para o seu crescimento descontrolado e para os processos que contribuíam para sua reprodução.
Daí que a possibilidade de uma abordagem antropológica a respeito da dinâmica urbana tenha permitido a Carlos Nelson inverter a ordem do jogo, apostando na observação da experiência cotidiana como estratégia para o entendimento da formação de complexos arranjos territoriais.
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Participante que se verte em participador, o "outro" que se soma e se faz complementar no exercício do (re)fazer da obra artística ou do projeto arquitetônico-urbanístico desvela o contra-molde de uma relação de alteridade que se desenha por diálogos possíveis, por interlocuções necessárias, repropondo linguagens que se permitam abertas, desconstruindo a figura aurática do grande conhecedor, do grande autor."
Hélio Novak, 2006:
Fazer um plano diretor desse tipo é uma estratégia problemática, pois exige pesquisas imensas e custosas, além de longos prazos de desenvolvimento, durante os quais as condições urbanas mudam. Além do mais, a desvalorização sistemática daquilo que existe conduz a políticas de demolição e reconstrução totais. Ao final, nem o plano, nem a política de "terra arrasada" que subentende são capazes de gestar a pretendida cidade ideal, ainda que o processo se arraste por décadas a custos estratosféricos.
Tais inconvenientes geram reações, que ocorrem a partir dos anos 1960 em várias frentes mais ou menos simultâneas. Já em fins dos 1950, no planejamento de Karachi, capital do Paquistão, propõe-se uma metodologia nova, chamada de "planejamento na ação", que pretende simplificar as bases das intervenções, reduzindo radicalmente os diagnósticos formais e evitando confrontos diretos com os interesses existentes (KOENIGSBERGER, s.d.). A falta de participação popular no planejamento também é criticada, o que faz surgirem nos Estados Unidos propostas bastante radicais, como o "planejamento advocacional" (DAVIDOFF; REINES, 1972) e a "arquitetura de guerrilha" (GOODMAN, 1972). No Brasil da ditadura militar, essa preocupação só encontra ecos isolados na urbanização pela Codesco (Companhia de Desenvolvimento de Comunidades) da favela de Brás de Pina no Rio de Janeiro e noutros trabalhos de Carlos Nelson Ferreira dos Santos como arquiteto, urbanista e professor.
Maria Lais Pereira da Silva, 2000:
"O governo Lacerda tinha feito muita pressão para remover a favela de Brás de Pina, mas foi durante o governo Negrão de Lima, seu sucessor, que foi criada a Codesco, a Companhia de Desenvolvimento de Comunidades. Sílvio Ferraz foi o responsável pela Codesco para o projeto de urbanização de Brás de Pina. Havia ainda uma arquiteta, Gilda Blank, que também trabalhou no projeto; ingressou no BNH e atualmente está na Caixa Econômica Federal, ou seja, milita até hoje na área habitacional.
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Brás de Pina foi uma experiência-modelo?
Ah sim, foi um marco na história das políticas habitacionais, sobretudo porque se contrapôs a uma tendência autoritária, de erradicação de favelas. Desde a década de 30 já se falava em urbanização e melhorias nas favelas, mas a maneira como foi levado adiante o projeto é que era extremamente inovadora.
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O Carlos Nelson fez uma importante inversão no tratamento vigente nas pesquisas sobre pobres e favelados: primeiro, transformou-os de objeto em sujeito do trabalho de pesquisa. Segundo, passou a dar aos investimentos feitos pelos moradores nas favelas importância do ponto de vista patrimonial e arquitetônico. Terceiro, reconheceu que os favelados sabem o que querem, têm suas prioridades inclusive simbólicas; isso é fundamental no seu pensamento.
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Uma influência importante para toda a nossa geração, minha e do Carlos Nelson, foi John Turner, arquiteto e urbanista que desenvolveu durante anos um trabalho nas barriadas de Lima, no Peru, e divulgou a perspectiva do urbanismo 'de baixo para cima', ou seja, a partir dos moradores. Desenvolveu, inclusive, uma importante teoria relacionando estágios da urbanização e fases da vida, relações que 0s habitantes desenvolvem com o espaço e sua situação social. John Turner esteve no Rio de Janeiro em 1968 e foi levado a visitar conju ntos habitacionais e favelas; na ocasião, pronunciou uma frase que ficou famosa: 'Mostraram-me soluções que são problemas e problemas que são soluções'. A frase transformou-se numa espécie de bandeira para combater a erradicação de favelas.
No caso de Brás de Pina é importante destacar, entre outros aspectos, que os próprios moradores desenhavam os projetos de melhoria de suas casas. Os arquitetos apenas aconselhavam: 'É melhor botar a porta para lá, e a janela para cá'. Em suma, adaptavam a partir de alguns padrões."
Sandra Cavalcanti, 2000:
"[...] Ignoro quem criou a lenda de que a favela de Brás de Pina foi a primeira a ser urbanizada e que, graças a ela, a guerra contra a remoção foi vitoriosa. Essa foi a novela que inventaram. Mas não houve nada disso. Simplesmente, a favela não saiu dali porque eles não tiveram competência para legalizar e usar o terreno. Até hoje, isso é o mais doloroso, ninguém tem a titulação de propriedade em ordem. Fizeram malfeito, deixaram as ruas desalinhadas, não entenderam que havia um espaço maior, para dar mais conforto e para as casas poderem aumentar, depois.
Resultado: Brás de Pina é um dos piores exemplos de urbanização de favelas. Nós fizemos muito melhor. O resultado final na Vila Vintém e na Vila da Penha é infinitamente melhor."
Carlos Nelson Ferreira dos Santos, 1981:
"Algumas ações e maneiras de ser e de entender as coisas, que eu usava qualificar, com muita rapidez, como "alienadas", olhadas assim de perto, adquiriram outro sentido. Passaram a se referenciar a seus próprios campos e arenas, apareceram como elementos de dramas particularizados, frente aos quais, por não saber como me comportar, o alienado era eu. De observador de padrões e arranjos dos espaços públicos e privados e de candidato a interventor nas suas formas de produção e consumo, fui me transmutando em observador das inter-relações sociais e das redes de significados. Com a prática, eu e meus colegas fomos notando que isso parecia contar mais para os favelados do que as razões materiais ou práticas, em cujo inconteste predomínio acreditávamos ao entrar nas favelas como neófitos. De fato, fomos vendo que o mais fascinante resultado do que fazíamos era o que acontecia a partir daí e totalmente fora de nosso controle. Quanto mais inventávamos sofisticadas maquinações sobre o espaço, a economia e os comportamentos sociais, mais éramos superados pelos processos do dia-a-dia individual e coletivo dos moradores.
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Como urbanista nunca tive melhor experiência profissional do que a esse tempo em que trabalhamos tão diretamente com os nossos "clientes". Ainda que parecesse lógico o contrário, é muito raro que urbanistas tenham contatos face a face com as pessoas para quem fazem planos. Viviamos com o escritório cheio de favelados que invadiam para ver o que fazíamos e ficavam para discurssões que varavam a noite. Era emocionante ir recebendo aqueles pedaços dos mais diversos papéis e ir vendo um trabalho que surgia aos poucos.
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O que está acontecendo em subúrbios, favelas e áres periféricas nas cidades brasileiras é o processo arquitetônico e urbanístico mais interessante em todo o país: ai se desenvolvem respostas que são formas novas, nascidas do encontro da pobreza, sub-desenvolvimento e cultura tradicional com a dominação de um mundo moderno, industrializado e tecnológico. As respostas teriam por papel servir de ponte entre as duas coisas. Por essa razão, é necessário começar a trabalhar sobre elas e tentar compreender as suas regras."