1976
Estados Unidos
PublicaçãoIdiomas disponíveis
Português
Colaborador
Thiago Silva
Favelas cariocas: o problema da marginalidade
O estudo de populações faveladas tem se constituído em foco privilegiado para o esforço de diferentes e relativamente numerosos cientistas sociais nacionais e estrangeiros. O tema favela, principalmente, a partir do final da década de 50 e atingindo seu apogeu nos anos sessenta mobilizou vários tipos de trabalhos desde ensaios jornalísticos até pesquisas científicas com equipes numerosas, recursos, etc.O livro de Janice Perlman, The Mhyth of Marginality, Urban Poverty and Politics in Rio de Janeiro¹ expressa essas preocupações com grande vigor. Tendo sido publicado em 1976 já tem como referência uma vasta quantidade de trabalhos que a autora, escrupulosamente, sempre menciona ou cita. É claro que sempre há um ou outro trabalho mais recente que gostaríamos de ver referido e que, por conhecidas dificuldades de intercambio e comunicação, provavelmente não chegaram a tempo ao conhecimento da autora. Penso, por exemplo, no livro de Maria Júlia Goldwasser que traz uma série de dados significativos sobre a organização sócio-política de uma grande favela carioca².
Um dos principais méritos da Dra. Perlman parece-me ser, justamente, o fato de percorrer, com maior ou menor profundidade, grande parte da bibliografia mais significativa sobre o assunto favela e marginalidade. Por outro lado, preocupa-se em relacionar a problemática das favelas estudadas com situações que possam apresentar semelhança em outras sociedades, demonstrando uma saudável perspectiva comparativista. Sob este ponto de vista junta-se a outros cientistas sociais nas críticas ao conceito de cultura da pobreza. Embora não acrescente nada de teoricamente muito significativo ao que já foi dito, por exemplo, por Leacock e outros3, enriquece com exemplos cariocas concretos tais argumentos. Nesse sentido, seu trabalho pretende ser uma crítica e resposta ao que classifica como distorções e preconceitos das teorias ligadas às noções de cultura da pobreza e marginalidade. Basicamente o esforço da autora é de afirmar a situação de categoria oprimida da população favelada, apontando os mecanismos de dominação de classe que perpetuam sua situação de privação e impotência. O livro mantém sempre uma linha de crítica e denúncia de mecanismos materiais e ideológicos de manipulação e controle das camadas mais baixas da sociedade brasileira. Analisa, particularmente, o problema da remoção, sendo que uma das favelas que estudou, a da Catacumba, sofreu essa ação. Preocupa-se em mostrar como a remoção vai criar uma população realmente marginalizada e desenraizada, ao contrário da situação anterior nas favelas de origem. O que seria um mito manipulado por interesses de classe para estigmatizar os grupos favelados, passa a se aproximar de uma verdade quando da remoção para lugares onde as condições de vida seriam agudamente precárias. A remoção representaria o afastamento ou o dificultamento do acesso ao mercado de trabalho, aos benefícios da vida urbana em geral, inclusive bens simbólicos. Um dos pontos básicos do trabalho é procurar provar que os favelados eram ou são socialmente organizados, produtivos economicamente e que estariam longe de constituir núcleos e redutos de crime, indolência, apatia, etc. Embora a originalidade não seja o único critério para avaliar-se o mérito de um livro, cabe lembrar os trabalhos dos Leeds, de Machado da Silva que entre outros investigadores já há um certo tempo tinham realizado com competência e eficácia essa desmistificação em relação às favelas do Rio de Janeiro4. Repito que a autora faz referência, escrupulosamente, a quase todos esses trabalhos que precederam o seu esforço. No entanto, parece-me que existe uma diferença essencial na maneira como esses resultados foram obtidos. Por exemplo, a Dra. Perlman aplica questionários perguntando ao seu universo se acha que sua vida melhorou nos últimos cinco anos e como acha que será daqui a cinco anos, no futuro (p. 147); perguntando se "um homem pode ser verdadeiramente bom sem ter religião" (p. 143), e perguntando o que faria se fosse Presidente da República (p. 143); e pretende estar recolhendo dados sobre otimismo pessoal e geral, religiosidade e empatia respectivamente. É claro que há outras perguntas também, mas a grande diferença que a Dra. Perlman deposita na aplicação de seus questionários choca um pouco. Acrescente-se a isso uma reduzida preocupação etnográfica. A autora está voltada para a desmistificação das teorias sobre marginalidade e cultura da pobreza, porém pouco relevo dá ao material que certamente obteve, através da observação, no seu longo período de trabalho. Tendo desenvolvido sua pesquisa nas favelas cariocas entre setembro de 1968 e novembro de 1969 e graças a algumas indicações que dá de seu relacionamento com o universo, certamente, a Dra. Perlman tem material etnográfico mais rico a apresentar. Pouco ficamos sabendo sobre o cotidiano do favelado, sua rotina diária, com quem se encontra, com quem faz o que no seu network, concretamente como parentes e vizinhos se relacionam, com quem brigam e em torno de que, etc. A ausência de uma análise da vida religiosa constitui-se em séria lacuna, quando a própria autora dá indicações de sua importância na vida do universo estudado (p. 50 e p. 132).
Preocupada em mostrar a complexidade da vida social da favela era de se esperar que aprofundasse o estudo dos terreiros de umbanda ou de macumba, comprovadamente importantes focos de sociabilidade (v. Velho, Yvonne 1975)5. A Assembléia de Deus, por sua vez, com um constante crescimento de fiéis mereceria mais atenção. Da mesma forma as escolas de samba e o futebol pouco foram explorados embora, mais uma vez, a Dra. Perlman registre, de passagem, a sua existência e importância (p. 132). Não me parece que essas lacunas tenham se dado por acaso. A preocupação com questionários e tabelas talvez tenha afastado a pesquisadora de um exame mais detido do discurso e das categorias do universo, o que poderia permitir um conhecimento mais apurado de sua visão de mundo. Fica evidente o antigo problema da pertinência de certas perguntas de questionário que, muitas vezes, se revelam inadequadas ou irrelevantes dentro de uma experiência sócio-cultural específica que, por sua vez, envolve dimensões não captáveis por uma pesquisa de orientação mais quantitativa.
Preocupada em livrar os favelados de acusações e estigmatizações, a autora procura provar que eles não são pessoas inaptas, lerdas, desmotivadas, ineficientes, etc. Mas cai numa armadilha, pois, para desmistificar as noções de marginalidade e cultura da pobreza, continua operando ao nível dessa ideologia, sempre procurando responder questões e isolando traços que são colocados a partir de uma posição de cultura dominante ou talvez de classe média. Restaria perguntar o que o universo entende por eficiência, produtividade, empatia, racionalidade, etc., e ver que lugar encontram essas categorias dentro do seu sistema de representações e não partir de premissas sobre a universalidade de certas experiências e conceitos. Há, fora isso, algumas imprecisões ou conclusões apressadas, mais ou menos importantes, que precisariam ser revistas. Na página 23 a autora diz que movimento é o que os brasileiros mais valorizam. Não fica claro como chegou a essa conclusão. Pala em terrenos macumbistas na página 30. Suponho que esteja se referindo a centros e terreiros de macumba ou umbanda. Na página 205 afirma que Flexa Ribeiro, ex-candidato de Carlos Lacerda para o governo da Guanabara, era seu genro, o que é, no mínimo, uma imprecisão genealógica - um filho de Lacerda casou com uma filha de Flexa. Estas imprecisões, obviamente, não prejudicam o trabalho mas, no caso de uma outra edição ou de uma tradução para o português, poderiam ser revistas. É claro que minhas ressalvas fundamentais referem-se à metodologia do trabalho - deficiências etnográficas, uso de métodos quantitativos de utilidade discutível e, fundamentalmente, a dificuldade de apreender a visão de mundo e o ethos do universo estudado. Cabe ressaltar a utilidade e importância do livro ao levantar a variada e complexa literatura sobre o assunto, o esforço e seriedade com que foi enfrentada a pesquisa e a percepção e análise dos aspectos políticos da questão da favela. O trabalho da Dra. Perlman passa a ser uma referência indispensável para todo estudioso das camadas mais baixas da sociedade brasileira, inseridas no meio urbano.
1 PERLMAN, Janice. The myth of marginality, urban poverty and politics. University of California Press, 1976.
2 GOLDWASSER, Maria Júlia. O palácio do samba, um estudo antropológico da escola de samba Estação Primeira de Mangueira. Rio de Janeiro, Zahar, 1975.
3 LEACOCK, Eleanor Burke ed. The culture of poverty. New York, Simon and Schuster, 1971.
4 LEEDS, Anthony. Locality power in relation to supra local power institutions. In: Urban Anthropology, org. por Aiden Southall e Edward Bruner. Oxford University Press, 1973; Brazil in the sixties: favela and polity, the continuity of the structure of social control in Brazil in the sixties, org. por Riordan Roett. Vanderbilt University Press, 1972, e MACHADO, Luís Antônio. A Política na Favela, Cadernos Brasileiros 9. n.° 3, 1967; Mercados metropolitanos e trabalho marginal. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Rio de Janeiro, 1971.
5 VELHO, Yvonne. Guerra de Orixás, um estudo de ritual e conflito. Rio de Janeiro, Zahar, 1975.
Fonte(s): VELHO, Gilberto. Favelas Cariocas: o problema da marginalidade. Anuário Antropológico, Brasília, UnB, 1976, p. 321-324. Disponível em [http://www.dan.unb.br/images/pdf/anuario_antropologico/Separatas1976/anuario76_gilbertovelho.pdf].
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